DOCE ENVENENAMENTO
in memoriam de Edgar Allan Poe (1809-1849).
Em noites trevosas e insónicas, costumava olhar
da moldura da janela a pintura de uma rua adormecida e coberta de névoa. Nela nada
parecia transcorrer, tudo era imóvel. Exceto, a existência de habitantes subterrâneos
que emergiam das profundezas do Tártaro para em seu leito cometer deliciosos
delitos. Esses habitantes, senhoris da madrugada, tão logo se dissipavam quando
ao menor ruído lhes aproximava. Escondiam-se na escuridão, a espreita e a
espera, de a rua, cair novamente em sono profundo, para consumarem seus crimes.
Enquanto olhava, ouvi um ruído grave, crescente
e fantasmagórico, rasgando a névoa, acordando a rua. Os olhos vestidos de preto
e semicerrados tentavam encontrar, inutilmente, a sua direção. E, eis que
subitamente, o ruído fantasmagórico transformava-se diante de mim num belo e
infernal vulto marrom avermelhado. Os sentidos atônitos não filtravam mais
qualquer sensação. Naquele momento senti ser toda a rua. A rua era meu corpo,
meu corpo era a rua, sendo pisoteado pelas lanças rutilantes de sapatos marrons.
O vulto transcorria rapidamente entre as elipses formadas pelas luzes dos
postes e a escuridão. A cada elipse acentuava-se o rubro de sua carapaça
envolta de uma capa vítrea, bem como as chamas ondulares a encobrir a face e os
ombros. De um lado da rua, os habitantes subterrâneos, embora dispersados no
breu, pareciam em vigília pascal diante de sua passagem. De outro lado, meus olhos
e demais sentidos permaneciam embriagados frente aquela visão inefável.
A partir desse fato, mantive uma rotina
obsessiva de olhar a rua. Mas, parecia que nunca mais haveria de vê-la. Então,
tratei de curar essa obsessão noturna em meio a leituras e conversas com os
moribundos das artes, das ciências e da filosofia. Todavia, fora tomado de
sobressalto das leituras, quando tocou a janela um presságio. Mais que depressa
debrucei-me sobre ela, olhando panoramicamente a rua silenciosa. Não antevi
nada, a não ser um gato preto andando soberano sobre o telhado. Mas de repente
fui lançado contra um móvel pela força daquela visão: o vulto estava diante de
minha janela e olhava para mim. Demorei um tempo para me recompor da
assustadora visão. A razão encontrava-se dormente, tornando-me um autômato a
repetir fixamente: “- Não é possível!”, “- Não é possível!”, “- Não é possível…”.
“Não é possível…” – mas consegui completar o pensamento – “um mortal elevar-se
dos palácios dos mortos para habitar novamente entre os vivos!”. Adveio uma
perguntar perturbadora: o crime não teria sido consumado?
Ora, tudo começou quando ela adentrara
sorrateiramente em minha vida. No início visitas noturnas, depois fez de minha
casa a sua morada. Enquanto visitava-me nas madrugadas não havia qualquer
sentimento diabólico a não serem sentimentos ternos. Mas aos poucos estes foram
se transformando naqueles, de modo a defini-la como uma intrusa. A essa
definição se seguiu um pensamento insano, onde beatos nunca deveriam tê-lo, sob
pena de cometerem pecado em pensamento. O meu pecado seria tão difícil de
pronunciar no confessionário, mas deixava-me com um sorriso banal de uma
felicidade transbordante.
- Envenenar! Envenenar a intrusa! – ecoou
fortemente dentro de mim. Confesso que tentei herculeamente afastá-lo, mas a
ideia de envenenar apoderou-se não apenas de minha alma, senão do corpo. Tomado,
pois, pelo desejo ardente e funesto de envenenar, tratava de maquinar o crime.
No dia seguinte, comprava o instrumento
mortal. À primeira vista, um instrumento pueril e jocoso, pois se assemelhava a
uma seringa com “doce de leite”, irresistível a qualquer infante, porém letal. Conforme
a premeditação assassina ofereceria a ela um jantar, de maneira que a sobremesa,
Petit Gateau, haveria de ser seu
último prazer.
Entre olhares, durante o jantar, aproximava-se
irresistivelmente ao derradeiro fim. Servi a sobremesa como um verdadeiro Chef a lá francesa. O Petit Gateau
transformara-se em uma obra de arte mortal. Sem que suspeitasse em nenhum
instante, saboreava-o intensamente. Ao meu delírio e temor, olhava-a sem
manifestar qualquer sentimento, apenas um sorriso entreaberto estampava a face
pálida. Não demorou muito para que sentisse certo sufocamento. O esbranquiçado
dos olhos dava lugar a um vermelho escarlate. Cada vez mais sufocante e
ofegante, caiu inconsciente sobre o chão gélido. Debateu-se violentamente,
espumando como possuída por um demônio. O horror da cena findou com o silenciar
de seu corpo. O corpo tornava-se imóvel. Tocá-lo era irresistivelmente
assustador, mas precisava certificar-me de que havia dado cabo a ela. Com as
mãos tremulas toquei em seu corpo, que aos poucos ficava gélido como a
superfície. Senti imenso deleite diante da obra de arte realiza pelas minhas
mãos. A morte reinava bela e majestosa na casa.
Contudo, não havia premeditado o que fazer
com o cadáver. Conjecturava em esquartejá-la, distribuindo seus pedaços em
sacos de lixo. Mas, o sangue poderia futuramente me delatar, bem como os olhares
noturnos entre as persianas. Conjecturava agora enterrar o corpo em qualquer
terreno desabitado. Porém, logo descartaria a ideia, na medida em que algum animal
doméstico ou selvagem poderia curiosamente desenterrá-lo. Ocorreu-me, então, de
ocultar o cadáver aonde possivelmente habitara. Coloquei seu pequeno corpo em
um saco plástico e dirigi-me rapidamente a uma boca de lobo semiaberta, na qual
desovei o cadáver. O crime estava feito! A paz reinou soberanamente dentro de
mim e do lar. Não haveria mais na casa uma intrusa, mas tão somente um
estranho. Entretanto, a espreita da paz sempre se encontra a guerra. De modo
que, não demorou muito para que se abatesse em mim profunda tristeza e remorso.
O castigo prenunciava-se ao crime cometido, com longas noites insónicas de pesadelos
reais.
Em uma noite trevosa e insónica, um presságio
tocava em minha janela. Da janela vi um vulto. O vulto era ela, que havia
voltado das trevas para vingar-se de meu doce envenenamento.
Eduardo Morello
Inverno de 2013.
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