segunda-feira, 8 de julho de 2013

Doce envenenamento

DOCE ENVENENAMENTO


 in memoriam de Edgar Allan Poe (1809-1849).


Em noites trevosas e insónicas, costumava olhar da moldura da janela a pintura de uma rua adormecida e coberta de névoa. Nela nada parecia transcorrer, tudo era imóvel. Exceto, a existência de habitantes subterrâneos que emergiam das profundezas do Tártaro para em seu leito cometer deliciosos delitos. Esses habitantes, senhoris da madrugada, tão logo se dissipavam quando ao menor ruído lhes aproximava. Escondiam-se na escuridão, a espreita e a espera, de a rua, cair novamente em sono profundo, para consumarem seus crimes.
Enquanto olhava, ouvi um ruído grave, crescente e fantasmagórico, rasgando a névoa, acordando a rua. Os olhos vestidos de preto e semicerrados tentavam encontrar, inutilmente, a sua direção. E, eis que subitamente, o ruído fantasmagórico transformava-se diante de mim num belo e infernal vulto marrom avermelhado. Os sentidos atônitos não filtravam mais qualquer sensação. Naquele momento senti ser toda a rua. A rua era meu corpo, meu corpo era a rua, sendo pisoteado pelas lanças rutilantes de sapatos marrons. O vulto transcorria rapidamente entre as elipses formadas pelas luzes dos postes e a escuridão. A cada elipse acentuava-se o rubro de sua carapaça envolta de uma capa vítrea, bem como as chamas ondulares a encobrir a face e os ombros. De um lado da rua, os habitantes subterrâneos, embora dispersados no breu, pareciam em vigília pascal diante de sua passagem. De outro lado, meus olhos e demais sentidos permaneciam embriagados frente aquela visão inefável.
A partir desse fato, mantive uma rotina obsessiva de olhar a rua. Mas, parecia que nunca mais haveria de vê-la. Então, tratei de curar essa obsessão noturna em meio a leituras e conversas com os moribundos das artes, das ciências e da filosofia. Todavia, fora tomado de sobressalto das leituras, quando tocou a janela um presságio. Mais que depressa debrucei-me sobre ela, olhando panoramicamente a rua silenciosa. Não antevi nada, a não ser um gato preto andando soberano sobre o telhado. Mas de repente fui lançado contra um móvel pela força daquela visão: o vulto estava diante de minha janela e olhava para mim. Demorei um tempo para me recompor da assustadora visão. A razão encontrava-se dormente, tornando-me um autômato a repetir fixamente: “- Não é possível!”, “- Não é possível!”, “- Não é possível…”. “Não é possível…” – mas consegui completar o pensamento – “um mortal elevar-se dos palácios dos mortos para habitar novamente entre os vivos!”. Adveio uma perguntar perturbadora: o crime não teria sido consumado?
Ora, tudo começou quando ela adentrara sorrateiramente em minha vida. No início visitas noturnas, depois fez de minha casa a sua morada. Enquanto visitava-me nas madrugadas não havia qualquer sentimento diabólico a não serem sentimentos ternos. Mas aos poucos estes foram se transformando naqueles, de modo a defini-la como uma intrusa. A essa definição se seguiu um pensamento insano, onde beatos nunca deveriam tê-lo, sob pena de cometerem pecado em pensamento. O meu pecado seria tão difícil de pronunciar no confessionário, mas deixava-me com um sorriso banal de uma felicidade transbordante.
- Envenenar! Envenenar a intrusa! – ecoou fortemente dentro de mim. Confesso que tentei herculeamente afastá-lo, mas a ideia de envenenar apoderou-se não apenas de minha alma, senão do corpo. Tomado, pois, pelo desejo ardente e funesto de envenenar, tratava de maquinar o crime.
No dia seguinte, comprava o instrumento mortal. À primeira vista, um instrumento pueril e jocoso, pois se assemelhava a uma seringa com “doce de leite”, irresistível a qualquer infante, porém letal. Conforme a premeditação assassina ofereceria a ela um jantar, de maneira que a sobremesa, Petit Gateau, haveria de ser seu último prazer.
Entre olhares, durante o jantar, aproximava-se irresistivelmente ao derradeiro fim. Servi a sobremesa como um verdadeiro Chef a francesa. O Petit Gateau transformara-se em uma obra de arte mortal. Sem que suspeitasse em nenhum instante, saboreava-o intensamente. Ao meu delírio e temor, olhava-a sem manifestar qualquer sentimento, apenas um sorriso entreaberto estampava a face pálida. Não demorou muito para que sentisse certo sufocamento. O esbranquiçado dos olhos dava lugar a um vermelho escarlate. Cada vez mais sufocante e ofegante, caiu inconsciente sobre o chão gélido. Debateu-se violentamente, espumando como possuída por um demônio. O horror da cena findou com o silenciar de seu corpo. O corpo tornava-se imóvel. Tocá-lo era irresistivelmente assustador, mas precisava certificar-me de que havia dado cabo a ela. Com as mãos tremulas toquei em seu corpo, que aos poucos ficava gélido como a superfície. Senti imenso deleite diante da obra de arte realiza pelas minhas mãos. A morte reinava bela e majestosa na casa.
Contudo, não havia premeditado o que fazer com o cadáver. Conjecturava em esquartejá-la, distribuindo seus pedaços em sacos de lixo. Mas, o sangue poderia futuramente me delatar, bem como os olhares noturnos entre as persianas. Conjecturava agora enterrar o corpo em qualquer terreno desabitado. Porém, logo descartaria a ideia, na medida em que algum animal doméstico ou selvagem poderia curiosamente desenterrá-lo. Ocorreu-me, então, de ocultar o cadáver aonde possivelmente habitara. Coloquei seu pequeno corpo em um saco plástico e dirigi-me rapidamente a uma boca de lobo semiaberta, na qual desovei o cadáver. O crime estava feito! A paz reinou soberanamente dentro de mim e do lar. Não haveria mais na casa uma intrusa, mas tão somente um estranho. Entretanto, a espreita da paz sempre se encontra a guerra. De modo que, não demorou muito para que se abatesse em mim profunda tristeza e remorso. O castigo prenunciava-se ao crime cometido, com longas noites insónicas de pesadelos reais.
Em uma noite trevosa e insónica, um presságio tocava em minha janela. Da janela vi um vulto. O vulto era ela, que havia voltado das trevas para vingar-se de meu doce envenenamento.    


Eduardo Morello

Inverno de 2013.

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