terça-feira, 19 de março de 2013

CALIPSO E A PUBLICIDADE: O DESEJO HUMANO PELA TRÍADE BELEZA-JUVENTUDE-E-IMORTALIDADE


Eduardo Morello





Ulisses aparece nas obras a Ilíada e Odisseia de autoria atribuída a Homero, o qual teria sido responsável em “salvar” do esquecimento um das primeiras heranças culturais do ocidente: os mitos. A Ilíada narra os primórdios da Guerra de Tróia e os anos seguintes dessa épica guerra, onde se destacam os heróis gregos Aquiles e Ulisses. Já a Odisseia seguem os anos posteriores a essa guerra, narrando a viagem de Ulisses de volta para a sua casa, em Ítaca. Em meio a viagem de volta, Ulisses acaba sendo aprisionado na ilha paradisíaca da encantadora Calipso (uma divindade secundária), que se apaixona loucamente por ele, tornando-se sua amante. Contudo, o herói grego, está decidido a voltar para a casa, principalmente, para a sua esposa e filhos. Porém, Calipso não quer, de forma alguma, que seu amante a deixe, de modo a usar vários artifícios, mas sem obter sucesso. Apaixonada, ela tentará uma última cartada: oferecer a Ulisses algo que não é possível a nenhum mortal e, ao mesmo tempo, irrecusável, a saber, a imortalidade. Todavia, a imortalidade não basta. É preciso garantir a juventude do seu amado. Caso contrário, poderia acontecer algo semelhante à deusa Aurora. Ela também teria se apaixonado por um mortal, chamado de Tithonus. Em suplica a Zeus (deus supremo) pedira a imortalidade para o seu amado. Porém, esquecera-se de solicitar algo fundamental, a juventude. Os anos foram passando e o pobre Tithonus fora sofrendo do processo natural de envelhecimento, secando e enrugando-se agudamente, a ponto de tornar-se uma espécie de crosta velha. Aurora acabou por deixá-lo em um canto do palácio até resolver transformá-lo em um inseto, livrando-se, definitivamente, dele. 
De volta a Ulisses, ele não aceitou a imortalidade, aliada a juventude e a beleza – o que a maioria das pessoas aceitaria sem pestanejar –, pois era melhor ter uma vida “bem-sucedida” como um mortal, ao lado de sua família, do que uma vida fracassada enquanto um imortal, ao lado de sua amante. A vida “bem-sucedida” de Ulisses era a “excelência”, a vida virtuosa e heroica. Desta forma, ele é um “exemplar singular” de ser humano, porque, além de um herói virtuoso, fora capaz de não aceitar a oferta de Calipso, tornando-se mais tarde, verdadeiramente, imortal na memória do seu povo e de todas as gerações passadas e futuras, em razão, de suas palavras, feitos e ações. Tal recusa não seria fácil a qualquer mortal, mesmo que esse mortal fosse Ulisses. Isto porque, faz parte dos mortais os anseios, desejos e medos em relação a tríade beleza-juventude-e-imortalidade.
Neste sentido, os mitos são uma primeira forma de dar significado ao mundo, em particular, aos anseios, desejos e medos humanos. Contudo, é preciso esclarecer que eles não são sinônimos de “mentira”, nem tampouco são contos, lendas ou folclore. Os mitos são, sobretudo, narrativas que buscam responder aos anseios, desejos e medos humanos. Contudo, cabe perguntar: Qual o sentido dos mitos hoje?
Atualmente, a realização daquela tríade não é obra dos deuses, senão artifício de toda a publicidade dos produtos de beleza. Esta publicidade trabalha eficazmente com o desejo humano de alcançar a beleza, a juventude e a imortalidade. Porém, ela não conduz a reflexão e a crítica, senão ao consumo feroz de uma gama diversificada de produtos de beleza disponíveis no mercado. Mas, todos esses produtos prometem uma só coisa: tornar as pessoas “mais belas” e “mais jovens” – quiçá imortais!
Por outro lado, a imortalidade não seria desejada sem que fosse a ela aliada a beleza e a juventude, pois ninguém gostaria de acabar como Tithonus! Mas também se deseja a imortalidade, devido ao medo que se tem da morte, a qual faz parte da condição humana, da mesma forma que o nascimento. A morte, por sua vez, se opõe a beleza e a juventude, uma vez que ela põe fim a ambas. Esse fim é anunciado pela velhice. A velhice parece causar ainda mais medo nas pessoas, não só por aproximá-las, inevitavelmente, da morte, senão também por estar associada hoje a “rugas”, a “falta de vigor”, a “impotência”, ao “esquecimento”, ao “feio”. Então, para retardar a velhice e “escapar da morte”, a publicidade dos produtos de beleza convence, diariamente, as pessoas a consumirem esses produtos, pois abaixo da superfície da pele haveria uma camada básica de renovação. Sobre isso, escreve o filósofo francês Roland Barthes:

“Toda publicidade dos produtos de beleza se fundamenta, também numa espécie de representação épica do íntimo […] Paradoxalmente, é na medida em que a pele, antes de mais nada, é superfície, mas superfície viva, portanto, mortal suscetível de secar e envelhecer, que se impõe facilmente como sendo tributária de raízes profundas, daquilo que certos produtos chamam de a camada básica de renovação” (BARTHES, 2001, p. 58).
 Tal publicidade configura-se em um “mito hoje” na medida em que busca dar sentido aos anseios, desejos e medos humanos voltados a tríade beleza-juventude-e-imortalidade. Entretanto, canaliza-os na direção do consumo. De modo semelhante à Calipso, a “deusa” da Publicidade dos produtos de beleza busca convencer os mortais de que ao consumir esses produtos estariam eles garantindo a beleza, a juventude e “quem sabe” a imortalidade. Mas, apenas consomem espécimes de “cavalos de troia”, que ao final, escondiam a inevitável realidade da velhice.
Sendo assim, os “mitos hoje”, ao contrário, dos mitos gregos do passado, não conduzem a reflexão sobre questões relacionadas à tríade beleza-juventude-e-imortalidade. Tampouco se fazem críticos aos modos pelos quais se deve ou não buscar essa tríade. Eles apenas conduzem as pessoas para um mundo sem contradições, de uma clareza feliz, sem profundidade, um mundo de consumo, de modo a anular o sentido humano presente nos mitos. Assim, as pessoas acabam preferindo permanecer nas ilhas paradisíacas da encantadora “deusa” da Publicidade dos produtos de beleza do que voltar para “casa”!